A Caixa passa por uma escassez grave na sua capacidade de alocação de recurso à linha de financiamento do SBPE, tendo tomado medidas mitigatórias indesejáveis como a redução das cotas de financiamento e definição de teto do valor avaliado dos imóveis. As reduções das cotas entraram em vigor no início de Novembro/2024, com a modalidade PRICE passando a financiar 50% do valor avaliado do imóvel, em detrimento dos 70% que financiava anteriormente, enquanto na modalidade SAC a redução foi de 80% para 70% do valor avaliado. A definição de teto de valor de imóvel foi fixada em R$ 1,5 milhão, equiparando a linha ao SFH (Sistema Financeiro de Habitação), que possui juros maiores que o SBPE. Esse teto, no entanto, vale apenas para contratos de financiamento avulsos, quanto aos empreendimentos financiados pela Caixa, estes, seguem enquadrados no SBPE.
SBPE e a origem dos recursos
O SBPE é o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo, que é majoritariamente regido pela Resolução 4.676/2018 do Banco Central do Brasil, com o objetivo de captar e direcionar os recursos depositados em caderneta de poupança para promover o financiamento imobiliário. A resolução do Bacen estipula que 65% dos recursos depositados nas cadernetas de poupança devem ser destinados para essa finalidade, e isso não afeta apenas a Caixa Econômica Federal e sim um rol mais abrangente de instituições (negritamos):
Art. 2º O Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) tem por finalidade promover o financiamento imobiliário em geral, por meio da captação e do direcionamento dos recursos de depósitos de poupança.
Parágrafo único. Integram o SBPE os bancos múltiplos com carteira de crédito imobiliário, as caixas econômicas, as sociedades de crédito imobiliário, as associações de poupança e empréstimo e as cooperativas de crédito autorizadas a captar depósitos de poupança na forma da regulamentação vigente.
Esse "fantasma" da falta de recursos do SBPE é mencionado e previsto há muitos anos, porém, foi acentuado pela aceleração recente nas contratações com os sucessivos déficits da poupança, com saques feitos muito acima do montante depositado. Segundo dados oficiais do Bacen, o último ano que a poupança teve superávit, ou seja, houveram mais depósitos do que retiradas, foi em 2020 com uma captação líquida de R$ 166 bilhões. Em 2021, houve déficit de R$ 35 bilhões, 2022, R$ 103 bilhões e em 2023, R$ 87 bilhões. A série histórica do Bacen está atualizado até Outubro/2024, sendo que neste ano há um déficit acumulado de R$ 17 bilhões e um saldo total aplicado em poupança pelos brasileiros de mais de R$ 1 trilhão, porém esses dados não envolvem apenas a Caixa e sim o sistema financeiro brasileiro como um todo.
O próprio fato do SBPE ser a principal forma de financiamento da habitação para classe média no Brasil e este estar diretamente ligado à poupança já cria um desafio enorme, visto que o SBPE possui limitação de juros a 12% ao ano, enquanto a própria Taxa Selic está fixada em 11,25% ao ano que dá opções muito mais atrativas de investimento em detrimento da poupança. Como a Caixa domina mais de 2/3 do mercado de financiamento habitacional no Brasil, ela desempenha um papel social e atua como o maior propulsor da Construção Civil, e por isso acaba aplicando até mais que os 65% dos recursos em poupança sob sua gestão para o SBPE, acima do mínimo estabelecido pelo Banco Central do Brasil, mas existem alguns entraves, que abordaremos mais à frente, impedindo a Caixa de ampliar essa alocação.
Além dos recursos de poupança, atualmente, a Caixa também se vale do mercado de capitais e utiliza o LCI (Letras de Crédito Imobiliário) para financiar o SBPE. O LCI é uma linha de investimento isenta de Imposto de Renda, com prazo mínimo de 9 meses, após mudanças recentes do Bacen que havia jogado para 12 meses o prazo mínimo da letra. Estima-se que por volta de 20% dos recursos do SBPE são oriundos da LCI.
Demanda crescente do SBPE
O SBPE vive um momento glorioso no aspecto de volume de contratações, após longos períodos de baixas durante e após a pandemia quando houve uma diminuição nos lançamentos por parte das incorporadoras. Só até Setembro/2024, que é o período que foi mensurado para os ajustes nas cotas de financiamento, foram mais de 627 mil contratos assinados e por volta de R$ 175 bilhões em financiamentos concedidos, consolidando um aumento de 28,6% com relação ao mesmo período do ano anterior e criando um desequilíbrio complicado para a equação, visto que a contratação só cresce e a principal fonte de recurso que é a caderneta de poupança só cai.
Solução 1: Depósito compulsório do Bacen
Existem algumas soluções que são discutidas para atenuar o problema, no curto e médio prazo. O principal entrave para a capacidade de alocação de recurso da Caixa para o SBPE é a existência do depósito compulsório, definido pelo Bacen, de 20% de todos os recursos depositados em caderneta de poupança. Esse depósito compulsório é feito em favor do Banco Central do Brasil e acaba não sendo utilizado para concessão de crédito ou habitação. A Caixa defende que o depósito compulsório seja reduzido para pelo menos 15%, mas talvez uma redução maior seja necessária para acomodar o crescimento do SBPE.
Solução 2: Letras de Crédito Imobiliário
A LCI tem sido objeto de algumas mudanças no decorrer deste ano pela comissão reguladora que é a CMN (Comissão Monetária Nacional). Em Agosto/2024, a LCI passou a ter prazo mínimo de 9 meses (Resolução CMN n° 5.168 de 22/08/2024), mas havia sido modificada, em Fevereiro/2024, para um prazo mínimo de 12 meses (Resolução CMN n° 5.119 de 01/02/2024). A proposta é que a LCI volte a ter o prazo mínimo de 3 meses, se tornando atraente para investidores esporádicos ou que buscam algo no curto prazo, assim como desatrelar seu prazo da LCA, que é sua principal concorrente no mercado de investimentos e é ligada ao agronegócio e, também, tem o mesmo prazo mínimo de 9 meses.
Solução 3: Combater fuga de investimentos
O presidente da Caixa, Carlos Vieira, chegou a comentar, neste ano, em um evento presencial da Abrainc, sobre o problema da fuga de investimentos, mas não há uma proposta específica de regulação deste tema que tenha sido apresentada publicamente, porém este ponto é um dos desafios que o Bacen deve enfrentar no longo prazo para essa área. Basicamente, foi pontuado que várias instituições, principalmente bancos digitais, se tornaram muito atrativos como bancos de investimento, entregando rendimentos muito acima da poupança, e que até possuem investimentos ligados à habitação como o CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários), mas que não retorna sequer um centavo para o financiamento da habitação no Brasil. Como o SBPE trabalha com juros baixos, uma regulamentação obrigando certas instituições a operar essa atividade irá diminuir a rentabilidade dessas atividades, porém fomentar o financiamento habitacional.
A rentabilidade é o desafio
É importante frisar que a própria Caixa não consegue alocar recursos de suas outras linhas ligadas à habitação como FI (Fundos Imobiliários) ao SBPE, devido à rentabilidade do investimento não casar com a receita projetada pelos baixos juros do SBPE. Isso se torna um impasse também para a securitização desses ativos recebíveis por parte da Caixa. Na questão de venda dos recebíveis ligados ao SBPE se torna inviável, visto que os baixos juros tornam a carteira não muito atrativa.
A Caixa estuda criar o Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDC), mas ainda não deu muitos detalhes a respeito, só houve a menção que fará uma seleção das operações imobiliárias que serão lastreadas pelo fundo, dando um sinal que este deve acomodar financiamentos com juros maiores ou que no mínimo será um mix de funding para o SBPE e outras linhas do banco.
Sejam quais forem as medidas que serão tomadas para mitigar esse problema, estas deverão ser implementadas o quanto antes, pois estima-se que o SBPE pode esgotar totalmente seus recursos entre 2026 e 2027, mesmo com as medidas restritivas tendo sido impostas, que cerceia o acesso ao financiamento da habitação por parte da população. O desafio é colossal e deve ser enfrentado por todas as frentes que atuam no mercado financeiro.
CTO da Softnix