Obrigações do incorporador no Patrimônio de Afetação

Os benefícios do Patrimônio de Afetação são bem específicos como a redução tributária e isolamento do patrimônio, porém todo bônus vem com um ônus, e é fundamental o incorporador seguir estritamente as suas obrigações.

Por Matheus
17/12/2024

O patrimônio de afetação é uma das peculiaridades da Construção Civil, específicamente no âmbito das incorporações imobiliárias, que traz como principais benefícios a possibilidade de aplicar o Regime Especial de Tributação (RET) e a segregação patrimonial da obra com sua destinação específica para a confeccção do empreendimento afetado, não podendo tal patrimônio ser usado como garantia ou saldar dívidas de outras operações. No caso do Regime Especial de Tributação, que já tratamos no artigo sobre carga tributária nas incorporações imobiliárias, ocorre a substituição da tributação federal das receitas por PIS, Cofins, CSLL e IRPJ, que gera uma carga tributária de aproxidamente 5,93% sobre as receitas brutas pelo Lucro Presumido, para um imposto único chamado RET, cuja alíquota vigente é de 4%.

Afora dos bônus que são trazidos pelo Patrimônio de Afetação, temos conjuntamente o ônus do incorporador, que precisa ser devidamente cumprido com rigor, a fim de não ter um eventual desenquadramento por uma fiscalização do fisco, com cobrança retroativa e com multa de tudo que era pra ser uma economia de imposto dentro do amparo da lei. É importante frisar que este artigo focará exclusivamente nas obrigações adicionais que o regime de afetação institui para o incorporador, sendo que as regras gerais que são aplicáveis às incorporações imobiliárias já devem ser seguidas, com ou sem aderência ao regime de afetação.

Encol: uma breve história por trás do Patrimônio de Afetação

O Patrimônio de Afetação foi instituído pela Lei 10.931/04, em 2004, mas muitas pessoas desconhecem a história que deu força para que essa lei fosse desenvolvida e promulgada, em meio a muita desconfiança do mercado com as incorporações imobiliárias.

Uma das maiores atuantes do mercado de Construção Civil, no Brasil, foi a Encol, que iniciou suas atividades na década de 60 e teve sua falência decretada em 1999, deixando mais de 23 mil pessoas desempregadas e 710 obras inacabadas, com aproxidamente 42 mil clientes lesados, sem terem recebido os imóveis que adquiriram.

A Encol passou pelo principal problema que o Patrimônio de Afetação visa coibir: o desvio de recursos e receitas do empreendimento para outras finalidades que não estejam ligadas à execução da obra e à entrega do empreendimento, como, por exemplo, lançar outro empreendimento visando levantar mais caixa, amortizar dívidas da incorporadora que não têm relação com o empreendimento ou até mesmo antecipar dividendos aos seus sócios e investidores.

A falência da Encol deixou uma desconfiança enorme no mercado para investir em incorporações, visto que as incorporadoras carregam um passivo monstruoso e têm um ciclo de vida de produto muito longo, demorando mais para devolver os investimentos aplicados, e por esse motivo foi criado o Patrimônio de Afetação, que dentro das obrigações do incorporador possui mecanismos preventivos para que casos como o da Encol não voltem a acontecer. E é exatamente por isso que todo mundo só deve comprar um imóvel em um empreendimento com Registro de Incorporação e com Patrimônio de Afetação, cujas principais obrigações que falaremos neste artigo daqui em diante estão definidas no seguinte artigo 31-D da lei das incorporações (Lei 4.591/64):

Art. 31-D. Incumbe ao incorporador:

I - promover todos os atos necessários à boa administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive mediante adoção de medidas judiciais;
II - manter apartados os bens e direitos objeto de cada incorporação;
III - diligenciar a captação dos recursos necessários à incorporação e aplicá-los na forma prevista nesta Lei, cuidando de preservar os recursos necessários à conclusão da obra;
IV - entregar à Comissão de Representantes, no mínimo a cada três meses, demonstrativo do estado da obra e de sua correspondência com o prazo pactuado ou com os recursos financeiros que integrem o patrimônio de afetação recebidos no período, firmados por profissionais habilitados, ressalvadas eventuais modificações sugeridas pelo incorporador e aprovadas pela Comissão de Representantes;
V - manter e movimentar os recursos financeiros do patrimônio de afetação em conta de depósito aberta especificamente para tal fim;
VI - entregar à Comissão de Representantes balancetes coincidentes com o trimestre civil, relativos a cada patrimônio de afetação;            
VII - assegurar à pessoa nomeada nos termos do art. 31-C o livre acesso à obra, bem como aos livros, contratos, movimentação da conta de depósito exclusiva referida no inciso V deste artigo e quaisquer outros documentos relativos ao patrimônio de afetação; e
VIII - manter escrituração contábil completa, ainda que esteja desobrigado pela legislação tributária.

Irretratabilidade do regime de afetação

A adesão ao regime de afetação pelo incorporador é facultativa, portanto este pode escolher entre aderir ou não, mas é importante ficar claro uma coisa: uma vez aderido não pode voltar atrás. A aderência ao regime de afetação é irretratável e as obrigações do incorporador irão perdurar até que a obra seja entregue e tais obrigações sejam extintas. Após a afetação do terreno, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis, é protocolado no e-CAC, sistema da Receita Federal, o interesse em optar pelo regime, que já tratamos em artigo específico sobre quando iniciar a tributação no RET depois de protocolado no e-CAC, no qual mesmo que haja devolutiva do e-CAC com pendências anotadas, estas deverão ser resolvidas e já não pode voltar atrás, uma vez que já foi entregue o termo de interesse pelo regime.

Segregação patrimonial e financeira

Na incorporação regida pelo regime de afetação, o incorporador é obrigado a manter os recursos destinados ao empreendimento totalmente separados do patrimônio normal da empresa e de outras atividades que ela exerça. O objetivo é que as receitas do empreendimento tenham como destino a própria execução da obra e entrega do empreendimento. Então, a movimentação financeira do empreendimento afetado deve ocorrer em contas bancárias abertas específicamente para este. Então, é vedado ao incorporador utilizar a mesma conta bancária que utiliza para outras atividades e também o fluxo de recurso saindo da conta do empreendimento em favor de conta fora do patrimônio de afetação, sem o devido amparo legal. Uma das ocasiões que os recursos financeiros ficam de fora, ainda sem a extinção do patrimônio de afetação, é quando os valores excedem o montante necessário para a conclusão da obra.

Além da separação dos recursos financeiros em contas bancárias específicas, o incorporador precisa ter escrituração contábil completa e segregada das operações abrangidas pelo patrimônio de afetação, seja nos livros contábeis próprios da obra ou da incorporadora, com a devida segregação gerencial, inclusive quando a legislação tributária vigente não o obrigar a fazê-lo. Tal obrigação fica ainda mais clara na Instrução Normativa n° 2.179/24 da Receita Federal do Brasil:

Art. 18. O incorporador fica obrigado a manter escrituração contábil segregada para cada incorporação submetida ao RET-Incorporação.

§ 1º A escrituração contábil das operações da incorporação objeto de opção pelo RET-Incorporação poderá ser efetuada em livros próprios ou nos da incorporadora, sem prejuízo das normas comerciais e fiscais aplicáveis à incorporadora em relação às operações da incorporação.

§ 2º Na hipótese de adoção de livros próprios para cada incorporação objeto de opção no RET-Incorporação, a escrituração contábil das operações da incorporação poderá ser efetivada mensalmente na contabilidade da incorporadora, mediante registro dos saldos apurados nas contas relativas à incorporação.

É importante manter e registrar todas as saídas de recurso que são feitas com relação à execução do empreendimento objeto do patrimônio de afetação com as notas fiscais devidamente emitidas, com seus tributos recolhidos, e vinculadas ao CNO, o Código Nacional de Obras, de modo que todo o registro, inclusive na contabilidade, seja feito de forma regular e dentro da legislação vigente.

Comissão de Representantes

A Comissão de Representantes é obrigação do incorporador adepto ao regime de afetação ou não, porém no caso da adesão facultativa ocorrer, existem obrigações adicionais que são instituídas. A Comissão de Representantes é regida pelo artigo 50 da Lei 4.591/64, e quando esta é parte integrante de uma incorporação afetada, deve somar-se às obrigações comuns:

  • entregar à comissão, no mínimo a cada três meses, demonstrativo do estado da obra e de sua correspondência com o prazo pactuado ou com os recursos financeiros que integrem o patrimônio de afetação recebidos no período, firmados por profissionais habilitados, ressalvadas eventuais modificações sugeridas pelo incorporador e aprovadas pela Comissão de Representantes;
  • entregar à comissão balancetes coincidentes com o trimestre civil, relativos a cada patrimônio de afetação;
  • assegurar à pessoa nomeada nos termos do art. 31-C o livre acesso à obra, bem como aos livros, contratos, movimentação da conta de depósito exclusiva referida no inciso V deste artigo e quaisquer outros documentos relativos ao patrimônio de afetação.

O artigo 31-C da Lei 4.591/64, mencionado no último item, estipula que a Comissão de Representantes, bem como a instituição financiadora do empreendimento se houver, poderão nomear pessoa física ou jurídica, cada uma sob seu próprio custo, para acompanhar o patrimônio de afetação e ter o devido acesso a todas as informações necessárias para garantir a saúde do negócio. É obrigação do incorporador entregar e disponibilizar os documentos acima, bem como assegurar o acesso a informações adicionais e à obra, sempre que necessários, para que essa auditoria e conferência sejam devidamente realizadas.

Recolhimento do RET

É um tanto que óbvio, mas figura como uma obrigação do incorporador pagar corretamente o RET, imposto específico que se chama Regime Especial de Tributação, em detrimento da tributação tradicional feita por PIS, Cofins, CSLL e IRPJ. Ao aderir ao patrimônio de afetação, é aberto pela Receita Federal um CNPJ filial pelo qual deve ser feito a emissão e arrecadação do RET, assim como a apuração/escrituração fiscal deste imposto deve ser feito pelo CNPJ do RET. A inscrição no CNPJ deve ser feita através do evento específico "109 - Inscrição de incorporação imobiliária (patrimônio de afetação)".

Desde o final de 2019, fruto da promulgação e publicação da Lei n° 13.970/19, o RET passou a ser aplicável até o recebimento integral do valor das vendas de todas as unidades que compõem o memorial de incorporação, independente da sua data de comercialização, mesmo que tal recebimento ocorra após a entrega da obra e a extinção das principais obrigações discutidas neste artigo.

Garantial real ou alienação do terreno/obra

O patrimônio afetado no regime de afetação só pode ser objeto de alienação fiduciária, ou ser colocado como garantial real de qualquer operação de crédito, quando o produto de tal operação for integralmente destinado à execução da obra e entrega das unidades imobiliárias aos adquirentes.

Distribuição de lucros ou dividendos

O incorporador não pode alocar recursos financeiros do empreendimento afetado em função ilegítima com a lei, que permite tão somente que esses recursos financeiros sejam utilizados para "pagamento ou reembolso das despesas inerentes à incorporação".  A distribuição antecipada de dividendos/lucros é, portanto, vedada. Sendo a única exceção quando os recursos financeiros disponíveis excedam à importância necessária para a devida conclusão e entrega da obra aos seus adquirentes. E cabe mencionar que a lei permite pagamento de empréstimos e operações de crédito que estão ligados à incorporação, no decorrer da obra, e o reembolso de despesas que fazem parte da incorporação.

Responsabilidade unilateral em falência

O regime de afetação deixa bem claro que o patrimônio da obra está devidamente protegido e segregado, não podendo ser utilizado para saldar dívidas da incorporadora, por exemplo, tal como esses bens afetados não farão parte de eventual recuperação judicial ou falência do incorporador. Mas essa proteção não é uma via de mão dupla... O incorporador responde pelos prejuízos que causar ao patrimônio de afetação, bem como seus bens e ativos poderão ser usados para liquidar suas obrigações dentro do regime de afetação. Em uma eventual recuperação judicial do incorporador, é vedada a consolidação substancial de toda a massa, misturando o regime de afetação com as demais dívidas e obrigações do incorporador. No caso de falência decretada, existem regras em que a Comissão de Representantes decidirá as próximas etapas, podendo inclusive optar em tocar a obra de forma independente.

As obrigações listadas acima formam um resumo das principais e mais comumente aplicáveis obrigações que o incorporador precisa se atentar antes de aderir ao regime de afetação. É fundamental que o incorporador esteja amparado por contador e advogado especializado em Construção Civil, para que o cenário completo seja analisado e sua incorporadora cresça firme e saudável.

Matheus
CTO da Softnix
Olá! Sou Matheus, co-fundador e diretor técnico da Softnix, que desenvolve e mantém o Arquis ERP. Com mais de 10 anos de expertise na área de incorporação imobiliária e construção civil, trago conteúdos técnicos e curiosidades dos mais variados temas que se relacionam com a Construção Civil, principalmente sobre gestão e tecnologia, e sempre de forma descomplicada e objetiva para gestores, estudantes e trabalhadores da área.

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